Orgulho LGBT+: Dora Cudignola, lésbica que abraça a liberdade no envelhecimento

Presidenta de ONG com foco em idosos LGBT+ compartilha descoberta da sexualidade, autoaceitação e o processo de envelhecer. Longevidade é tema deste ano da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo

Por Ana Carolina Ferreira | ODS 5 • Publicada em 6 de junho de 2025 - 08:47 • Atualizada em 6 de junho de 2025 - 08:47

Dora Cudignola na sede da Eternamente Sou, associação que é referência na defesa dos direitos dos LGBT50+ no Brasil (Foto: Cadu Pinotti/Agência Brasil)

Dora Cudignola é uma idosa atrevida. Essa é a forma curiosa que a mulher de 72 anos se descreve, logo na minha primeira pergunta: “quem é você?”. Ela responde, com um sorriso no rosto, que é uma idosa lésbica; que encontrou a felicidade e aprendeu a se amar. “Você vai entender essa minha liberdade de te contar a minha história”, me disse bem no início da chamada de vídeo para a entrevista. “Gostaria de ser assim antes, mas não tinha coragem. Hoje é diferente. Tive uma mudança tão grande e feliz, aprendi a me amar. Tudo isso a gente aprende com o tempo, é o jeito que vivemos. Essa Dora está pronta para o que der e vier”, disse.

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Durante uma hora e meia de conversa, com risos e fortes emoções, compartilhou sua jornada de vida: da infância à descoberta de sua sexualidade; falou sobre o preconceito, os amores de sua vida e a libertação. Hoje, ela vive abertamente e com um sorriso, sem medo nem vergonha de quem é – e com prazer em contar sua história. Aos 72 anos, Dora Cudignola não apenas celebra sua própria trajetória, mas acolhe outras ao presidir a Eternamente Sou, ONG dedicada a idosos LGBT+. A organização estará presente na Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, em 22 de junho, que tem como tema “Envelhecer LGBT+: Memória, Resistência e Futuro”.

Se você se aceitar, vai ver que a vida vai ser mais mansa, mais alegre. Talvez o seu envelhecimento até demore mais. Muitos não acreditaram que eu iria posar nua para a exposição. Mas tenho muito orgulho da minha idade, do meu envelhecimento, da minha vida. Acho que é sobre viver, com pouco, com muito, sem nada, mas sempre com um sorriso. E sempre que se tem uma dor, deve repartir com o outro

Dora Cudignola
Presidente da ONG Eternamente Sou

A infância de Dora foi marcada pela simplicidade e pela figura de uma mãe católica e muito religiosa, e do pai, um pedreiro “irresponsável, mas muito carinhoso”, como lembra. Cresceu na Vila Carrão, bairro da zona leste do município de São Paulo, numa família pobre e unida — Dora, os pais e um irmão mais novo. Ela recorda de se divertir mais com meninos, jogando bola e pião; bonecas não a atraíam tanto. No entanto, havia uma brincadeira, com uma menina chamada Rosa, que gostava. Aos 6 anos, teve sua primeira experiência íntima com a amiga de mesma idade: “nessa época, tive só uma amiguinha, e a gente brincava de casinha. Era Rosa, uma pessoa maravilhosa. Foi a primeira vez que dei um beijo na boca”.

Mais tarde, aos 14 anos, Dora começou a trabalhar em uma fábrica de roupa no Brás, uma experiência que a expôs à realidade dos trens lotados e ao assédio que recebia dos homens, forçando-a a aprender a se defender. Na mesma idade, também se envolveu com uma prima — assim como a amiga da infância, escondido, num quarto, sem que ninguém soubesse. “Nós íamos ao quartinho, a gente falava um pouco mais alto para as pessoas perceberem que estávamos conversando, mas depois tinha o silêncio. E esse silêncio era o que queríamos”, conta. No entanto, essas situações não a fizeram entender que gostava de mulheres; durante sua adolescência, namorou homens publicamente.

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Casou jovem, aos 19 anos, com um homem, e teve uma filha. Mas, mesmo com um marido carinhoso e a felicidade de ter uma filha e um lar, percebeu que não amava o marido como parceiro, somente como amigo, e decidiu que precisava viver sua própria vida. Foi então que conheceu uma mulher enquanto trabalhava como operadora de caixa num supermercado, quando tinha pouco mais de 30 anos, dando início ao seu primeiro relacionamento com outra mulher. “Me entendi como lésbica a partir desse namoro, mas ainda com muito medo. Estávamos saindo da ditadura militar. Se hoje na delegacia ainda tem repressão, naquele tempo era pior ainda. As pessoas julgavam e tinham muito preconceito. Como poderíamos andar de mãos dadas? Por mais que eu particie de grupos de mulheres falando da libertação e dos nossos direitos, era muito difícil naquela época”, conta.

E Dora ainda teve que lidar com a repressão da parceira. Embora tenha sido uma experiência de paixão intensa, foi também marcada por violência doméstica. “Tinha momentos que ela era carinhosa, mas às vezes mudava. Eu não conseguia terminar. Sempre acompanhei mulheres que sofriam violência doméstica, fui voluntária em uma ONG que acolhia vítima. E, de repente, estava acontecendo comigo; eu não conseguia sair”, conta.

Dora, que viveu cerca de três anos ando por maus tratos físicos e psicológicos, se viu perdendo a vaidade e se questionando por que permitia aquilo. Ela ainda alerta a importância de falar sobre o que ou. “A gente pensa que a violência só acontece de um homem para a mulher, mas essa situação também acontece com casais homoafetivos. A gente nunca sabe o que acontece entre quatro paredes. Quando conto minha história, não quero que tenham dó de mim; é para as pessoas poderem se libertar”.

‘A primeira vez que beijei meu amor em público foi no seu velório’

Dora conseguiu se libertar do relacionamento tóxico e, depois disso, não se fechou para o amor. Em 2001, conheceu Silvia numa sala de bate-papo online. “O meu nome no perfil era Deusa, e o dela Raio de Sol. Me apaixonei nas conversas com ela. Quando a conheci pessoalmente, meu coração bateu tanto”, lembra Dora. Foi o início de um relacionamento que durou 13 anos, ainda com o receio de manifestar o amor em público.

Dora à esquerda e Silvia à direita, eando em Londrina (Paraná) numa das poucas fotos que guarda (Foto: arquivo pessoal)

Em 2014, Dora e Silvia trabalhavam como diretora e coordenadora de uma mesma escola, em São Paulo — Dora sempre fora engajada com ONGs e, no início dos anos 90, a partir do projeto Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos, do Centro de Comunicação e Educação Popular do Itaim Paulista, iniciou carreira de professora de ensino fundamental. Embora muito profissionais, o carinho entre o casal na escola em que trabalhavam era visível aos alunos e professores.

Foi numa sala, em reunião com outros professores, que Silvia teve uma morte súbita devido a um Acidente Vascular Cerebral (AVC).  “Para mim, foi um desespero perdê-la. Silvia saíra de casa com saúde maravilhosa, não estava reclamando de nada, e de repente veio esse AVC que levou minha querida, meu amor”, conta Dora.

No funeral, ela revelou publicamente seu amor pela primeira vez na vida, beijando Sílvia na frente de todos, gesto que lamentou não ter feito antes. “Naquele momento, não prestei atenção em quem estava lá, não estava preocupada. Comecei a falar do nosso amor como se estivesse conversando com ela. A primeira vez que beijei meu amor em público foi no seu velório”, relembra. Depois, ando pelo luto, se perguntava: “Por que, Dora, você se escondeu? Esse amor poderia ser demonstrado, era um amor tão lindo. Não importava se era uma mulher, esse amor era muito grande. Se você não se importou de beijá-la morta na frente de todo mundo, por que não fez isso antes?”. Esse amor perdura até hoje; desde então Dora não busca outro relacionamento e sofreu novamente com a morte recente de uma cadela que era o “último elo” com Silvia. Mas, apesar de tudo, Dora encontrou a felicidade novamente.

ONG Eternamente Sou e o acolhimento de pessoas idosas

A superação do luto e da depressão que a isolou veio com o engajamento na Eternamente Sou. Sua filha, que também é lésbica e psicóloga, descobriu a ONG em 2018 e a incentivou a participar do coral, após ver a tristeza da mãe mesmo quatro anos após perder Silvia. O acolhimento e a troca de histórias na organização a fortaleceram, fazendo-a perceber que, apesar de suas tristezas, outras pessoas também haviam ado por experiências difíceis, como serem expulsas de casa ou terem que se prostituir.

“Fui observando o acolhimento da Eternamento Sou, não só comigo, mas com as outras pessoas. Isso foi me dando a força. Ao ouvir tantas realidades você sofre, mas abraça o outro, dizendo: ‘vem aqui, amigo. Sua história me comoveu, mas vamos lutar para melhorar. O que podemos fazer?’ E essa união e acolhida para mim é muito importante. Após entrar no coral não saí mais”, diz. A partir de seu envolvimento com a organização, Dora se tornou vice-presidente e, no ano ado, foi eleita presidente. A Eternamente Sou abraça todas as letras da sigla LGBT+, oferecendo serviços e projetos desde e em saúde e direitos até oficinas, rodas de conversa e distribuição de cestas básicas.

Evento Café e Memórias LGBT+ em 2024, na sede da Eternamente Sou, em São Paulo (Foto: reprodução/ @eternamente.sou via instagram)

Dora também conta que sonha em ter uma ILPI (Instituição de Longa Permanência para Idosos) LGBT+, um local onde idosos poderiam viver com seus companheiros e se sentir verdadeiramente acolhidos e amados, sem o medo de serem julgados — como aconteceu durante sua trajetória de descoberta até aceitação de sua sexualidade. Ela lembra de uma dinâmica em grupo que aconteceu na organização. “O facilitador de emoções perguntava ‘o que você deixou de fazer para você? E se o mundo acabasse hoje, o que você faria? Então se iniciou um debate. As pessoas começaram a se abrir, sorriram e choraram. A vida não é tão ruim quando temos uma associação que nos ampara. O nosso medo é justamente eles não terem um local de acolhimento, e a idade é um fator que faz a gente voltar para o armário. E a gente já lutou tanto para isso não acontecer”, conta.

Para Dora, envelhecer é um processo que “está dentro de você. Não se trata das rugas ou da flacidez do corpo, mas de aceitar as mudanças com carinho e respeito próprio”. Aos 72 anos, Dora tem muito orgulho de sua idade e história, apesar das tristezas vividas. Ela participa da exposição fotográfica “O mais profundo é a pele”, que mostra corpos de idosos nus, no Museu da Diversidade Sexual, como parte da programação de eventos para a Parada do Orgulho.

“Se você se aceitar, vai ver que a vida vai ser mais mansa, mais alegre. Talvez o seu envelhecimento até demore mais. Muitos não acreditaram que eu iria posar nua para a exposição. Mas tenho muito orgulho da minha idade, do meu envelhecimento, da minha vida. Acho que é sobre viver, com pouco, com muito, sem nada, mas sempre com um sorriso. E sempre que se tem uma dor, deve repartir com o outro”, finaliza. Sua mensagem final faz jus à descrição “idosa atrevida”, que se torna sinônimo de coragem, e uma inabalável vontade de viver, acolher e amar.

Ana Carolina Ferreira

Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.

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